sábado, 25 de julho de 2009

Beijo com Gosto de Fim de Mundo

Meus lábios estavam rachados de tanto esperá-la naquele frio. Sabia que devia ter trazido minhas luvas e um pouco mais de dinheiro na carteira. E o vento não cessava. Resolvi tomar um café na padaria de frente à praça, onde poderia me abrigar e vê-la chegar.
Sentei-me ao balcão, pedi o café e a atendente prontamente me serviu com um sorriso simples e de pouca expressão, por cima de um semblante preocupado. Sorri-lhe de volta e perguntei qual o motivo de sua preocupação. Respondera-me que se devia à minha presença naquele momento. Encarei-a intrigado, e perguntei o porquê. E enquanto atendia outro cliente, disse-me que eu a preocupava por não estar preocupado. Estranhei, bebi o resto do meu café antes que esfriasse e pedi-lhe outro. Ao me servir, perguntei porque deveria estar preocupado e ela deixou o bule cair, pra minha sorte, do outro lado do balcão. Pediu-me desculpas, e entrou na cozinha correndo, dizendo que traria outro bule.
Bom, pensei eu, talvez ela não esteja num dia muito bom. Olhei em volta e repensei: na verdade, ninguém ali parecia estar num dia bom. Apesar de cheia, a padaria estava quieta e nada se ouvia além dos barulhos de xícaras, pratos e talheres, e todos pareciam estar agindo mecanicamente, como robôs. Não pude conter o riso ao pensar em filmes de ficção científica, com máquinas dominando a sociedade e fazendo os humanos de escravos. Deti o olhar em uma garotinha de uns 6 anos, seu cabelo encaracolado preso em duas tranças que lhe caíam até a cintura, com uma bala na boca aberta, olhando concentrada para a televisão. Parecia ter nascido para aquilo, conforme estava paralisada ao lado da mãe, que também tomava seu café sem tirar os olhos da tela.
Reparei então que a televisão era o que os prendia ali, os prenderia eternamente se fosse possível, e que eu era o único a não assistir o plantão de última hora sendo exibido. Comecei a prestar atenção no que era dito pela repórter que parecia ter se arrumado também de última hora, e lentamente comecei a entender porque deveria estar preocupado.
A atendente voltava apressada com o outro bule e pedi-lhe para que aumentasse o volume da televisão. Pegou o controle debaixo do balcão, aumentou o volume e ninguém ali parecia ter notado, nenhum movimento inquieto ou algo do gênero, e agora a voz da repórter e suas palavras rápidas e assustadas ecoavam nas paredes da padaria e fazia o balcão de madeira e as garrafas na prateleira vibrarem.
Segundo ela, algum tipo de apocalipse havia realmente chegado, e não se assemelhava com nenhuma profecia já feita, pela quantidade de horrores que estava trazendo à humanidade. Recomendou que todos os espectadores fizessem suas preces e rápido, pois seriam as últimas do pouco tempo de vida que lhes restava. E de repente, a câmera foi cortada e o sinal da televisão caiu, sobrando apenas o chiado do canal fora de sintonia.
Um silêncio dramático na padaria. E então, comecei a rir, rir como nunca havia rido na vida, pensando em como aquelas pessoas podiam acreditar em besteiras como apocalipses coletivos e como podiam estar apreensivas diante de tudo aquilo. E continuei rindo, descrente, o novo centro das atenções mecânicas da padaria. Sorridente e descrente, até o momento em que as luzes detrás do balcão e pelo resto das ruas da cidade se apagaram. Quando percebi que meus movimentos não estavam mais tão seguros, olhei para todos os vultos à minha volta, parcialmente iluminados pelo estranho sol que iluminava a praça e deixei aquela maldita padaria.

Com as mãos trêmulas larguei o dinheiro em cima do balcão, olhei para a praça e lá estava ela sentada em um dos bancos, com seu sorriso confortante e as pernas cruzadas como sempre as cruzava quando me esperava: a única coisa na qual eu realmente acreditava, o meu apocalipse, o meu atravessar a rua correndo, o meu último abraço, o meu beijo com gosto de fim de mundo, então.

domingo, 19 de julho de 2009

O Último E Mais Sincero Desta Hora

Quando deu por si, estava de pé, debaixo da marquise, com sua mão esquerda a apoiar o resto de seu corpo na pilastra mais próxima. Talvez tenha acordado pela sensação áspera que a pilastra trabalhada dava à mão, ou por ter notado que sua vida vinha sendo um teatro e ele um ator faminto, atuando mais para agradar ao público e não morrer de fome do que pelo prazer ou pela pura paixão. Paixão que poderia confortar-lhe o coração já atrofiado pela falta de uso, de sentimentos e de vida.

Apoiou-se em seus pés, olhou para as marcas vermelhas na mão e então para o pátio à sua frente. Era uma área amplamente aberta, quase vazia e perfeitamente pavimentada, com um jardim de porte médio no centro, com bancos de madeira e árvores altas ao redor, e mais ao fundo o segundo prédio. O sol forte pós-almoço-em-restaurante-executivo iluminava desde a avenida e o viaduto à sua esquerda até o parque à direita. Tudo realmente grandioso.
Como a peça na qual sua vida havia se tornado, a partir do momento em que partiu rumo ao que achava ser ‘A Vida’.

As nuvens brancas e robustas e o sol revezavam sua posição no céu, fazendo o pátio, a avenida, o parque e os bancos mudarem de tonalidade a cada 4 minutos, de cinza-claro para amarelo-radiante para cinza para cinza-claro para amarelo-radiante, caracterizando assim uma tarde perfeita. Uma tarde típica para se sentar em algum banco de madeira em algum jardim verde debaixo de algumas árvores a balançarem com o vento em algum pátio de cimento em alguma megalópole cinzenta em algum planeta em decadência.

Sentou-se então para pensar no ponto em que chegou. Viveu até ali, não por ele, muito menos pelos amigos. Viveu apenas para o resto das pessoas do mundo que nem faziam ideia de que ele existia, do que podia acontecer em sua mente e não se importavam com ele, justamente por não saberem quem é. Em sua minoria, ele sabia quem eram, e só vivia para atuar para todos e para quando víssem-no no palco, terem uma impressão de como ele fosse.
Mais um diálogo interno se seguiu após a reflexão, duas mentes distintas no mesmo corpo: sua vida e seus pecados.

Vida: - “Primeira e última vez que me ouvirá: Vai viver! Danem-se seus fantasmas, suas ilusões ou suas peças! VIVA!”
O rapaz ouvia, mas seus pecados continuavam a manchar o palco e as vestes com suas desculpas inertes de inexperiência e inaptidão para a coisa.
E a vida, impaciente e cansada de ter sido deixada de lado por todos aqueles anos, tomou a frente e nunca mais os crescentes sentimentos felizes naquele corpo e naquela alma ouviram falar daqueles pecados que os prenderam por noites a fio.

E o rapaz, quando deu por si, estava de pé, debaixo da marquise, com sua mão esquerda a apoiar o resto de seu corpo na pilastra mais próxima. Talvez tenha acordado pela sensação áspera que a pilastra trabalhada lhe dava à mão, ou por ter sentido a brisa leve pós-almoço-em-restaurante-executivo no clichê de seus cabelos, provocando-lhe pela primeira vez na vida, o orgulho e o prazer de ser quem era.